Crónica de Jorge C Ferreira | Cartas de uma vida

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Cartas de uma vida

Passeava na avenida grande em todos os sentidos. Era raro parar. Carregava entre as mãos papéis amarelecidos. Escritos em letra feminina. Algumas letras desmaiadas. Cores variadas. Seriam estados de espírito?

Por vezes interpelava as pessoas e perguntava de quem era determinada carta. Ele que, antigamente através da escrita conseguia decifrar a pessoa e o seu sentir, tinha desaprendido a ler. Esqueceu as letras e os nomes. Esqueceu-se de si. Tinha coisas muito antigas que, por vezes, lhe atormentavam a cabeça. Tudo o que via era novo para ele.

Havia quem dissesse que tinha sido uma inteligência. Um homem muito interessante. Agora, poucos se interessavam por ele. A avenida das árvores grandes era a sua vida. Por vezes olhava as montras das lojas muito caras, mas nada lhe interessava. De vez em quando um sorriso, um esgar, algo que não se entendia bem. Eram aquelas cartas que o incomodavam. Quase um tesouro. Quase a vida toda ali exposta.

As vogais e as consoantes todas juntas. Mensagens que não conseguia decifrar. Os filhos que nunca teve. Os pais que já não tem. A cidade que perdeu. Dessa cidade, que amava, resta aquela avenida, as árvores e os bancos e o trânsito infernal. Sabe onde lhe dão uma bucha. Vai apertando o cinto cheio de buracos. Caminha e pede às pessoas para lhe lerem uma carta. Poucos mostram disponibilidade para lhe lerem os amores perdidos. Há quem aceite o desafio.

Sentado num banco há um homem que leva a peito a sua função. Ele vai mostrando, em esgares perdidos, a sua não emoção. Quem chora é o fulano que lê, que puxa de um lenço de linho azul com monograma e limpa algumas lágrimas. O ouvinte faz um ar que parece de espanto. Só pergunta: «Quem escreveu, quem escreveu?» Esta passou a ser uma cena repetida a diário. O homem que lia e o que ouvia esperavam-se sem horas marcadas. A função tinha várias interpretações conforme os passantes.

Passaram a ser duas as figuras interessantes daquela avenida. Ouvinte e Leitor dividiam os agrados dos outros caminhantes daquela via. Passou a haver uma roda à volta do banco. Quando a leitura de uma carta terminava havia aplausos. Fossem os intervenientes mais atrevidos e teria havido uma “performance”. Mas não, tudo aquilo eram actos de amor. A vontade de ler e a vontade de ouvir. Tudo isto acontecia enquanto um grupo de turistas passava num autocarro panorâmico espreitando coisas sem interesse.

Um dia, o que lia conseguiu convencer o que ouvia a ir a sua casa. Um quarto na parte velha da cidade. Uma pequena estante de madeira cheia de livros e livros amontoados pelo chão. Uma cadeira, uma mesa e um espelho. Um quadro de um artista desconhecido. Uma cama estreita e um colchão no chão. Um monte de jornais velhos e alguns papéis soltos. Assim se vivia na cidade grande. Assim aqueles dois passaram a partilhar a vida depois do consentimento da senhoria.

Passaram a ser inseparáveis. Chegada a noite o que lia passou a ler alto os seus livros. Podia ler sempre o mesmo que, para o ouvinte, era sempre um livro novo. As cartas foram arquivadas em capas de cartolina e passaram a viver sob o colchão. Enquanto o ouvinte dormia e sonhava as letras das mulheres saiam das cartas e vagueavam pelo quarto.

Mensagens nunca perdidas.

«Olha, isto é uma história triste, mas, ao mesmo tempo é bonita. Não sei que te dizer.»

Voz de Isaurinda.

«Sabes, a natureza humana é capaz de tornar belo o triste.»

Respondo.

«É raro, é raro…»

De novo Isaurinda e vai, a incerteza na mão.

Jorge C Ferreira Fevereiro/2019(198)

 

 

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18 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Cartas de uma vida”

  1. Manuela Moniz

    Que dizer, Jorge? Que amei profundamente este texto. Emocionada, perdi-me e encontrei-me nas várias leituras que fiz dele. Que belas eram as cartas de amor. Onde andarão as minhas? O quanto eu gostaria de as escutar e sentir com a intensidade do amor com que as escrevi.
    Obrigada por mais esta bela pérola literária. Ternura. Beijo

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Manuela. Que as tuas vária leituras te tenham dado alegria. Muito grato por este comentário. Abraço

  2. Idalina Pereira

    Palavras de Amor escritas com a sensibilidade única de alguém que tão bem sabe usar as palavras…
    Um texto de antíteses.
    Tal como a Isaurinda que dizer mais?!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Idalina. Como sabem bem as suas palavras. Grato. Abraço

  3. Madalena Pereira

    Comovente! Cartas de amor são”pedaços de dor sentidas de alguém” como diz a canção. E são estimadas e guardadas, com amor também (até debaixo do colchão), por quem tem a ventura de as receber. Gostei muito, meu amigo, deste magnífico texto! Obrigada, um beijinho

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Madalena. As velhas cartas de amor e a memória. Que bem disse. Abraço

  4. Branca Maria Ruas

    Uma belíssima história de amor, entre o que lê e o que ouve, contada com a ternura e sensibilidade que te caracterizam.
    A Isaurinda tem toda a razão…!!!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. És um ser de ouvir. É tão bom saber que lês o que escrevinho! Abraço

  5. Teles Ivone Teles

    Querido Amigo/ irmão, um texto que pode ser uma carta tua para cada um de nós. Era uma vez um homem invulgar que passeava por uma Avenida de uma Cidade. Era um homem sensível e tinha um hobby; enquanto os seus passos percorriam as ruas, apanhava pelo ar as palavras mais bonitas que lhe chegavam aos ouvidos. Reparava que a maioria saíam da boca de mulheres mais velhas e mais sábias, mas também de jovens raparigas. Guardava as palavras e em casa escrevia com elas cartas que ia juntando. Um dia as cartas estavam agitadas e interpelaram esse homem:__” Se nos criaste e somos tão belas, porque não as partilhas enquanto passeias, e ofereces a nossa beleza a quem passa? ” O homem bonito decidiu e levou umas poucas. Sentou-se a lê-las e em breve tinha um amigo a ouvi-las. Passavam pessoas e paravam, também para ouvir. Eram cartas de amor, as mais belas alguma vez ouvidas. E todos os dias, o que as escrevia e o que as lia se encontravam e, em breve eram rodeados por muita gente que se maravilhava a ouvi-las e as iam partilhando para que não se perdessem as mensagens que encerravam em si. Até a Isaurinda as queria a ouvir sempre e largava o seu inseparável pano. E foi assim que li as tuas cartas. As palavras bonitas que escreves, são cartas para cada um de nós, partilhando-as e partilhando-te. As palavras têm um condão, o de serem sentidas de muitas formas e sentimentos. E terás, sempre, tantas e tantos ouvintes, que se enriquecem e vivem com elas. Beijo amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Que belo o que escreveste. Que bom é ler-te. Abraço

  6. Cristina Ferreira

    Também estou como a Isaurinda, não sei que te dizer, não encontro palavras que descrevam o que esta crónica me faz sentir. Porque a beleza está nos olhos de quem a sente – “ tudo aquilo eram actos de amor “ .
    Sem dúvida que “a natureza humana é capaz de tornar belo o triste “ , mas mais uma vez estou com a Isaurinda e acrescento – Só os raros!
    São momentos assim que eu vou guardá-lós a sempre, querido Jorge. A tua escrita é única! Bem hajas.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Todos os actos de amor são entregas. Dar e receber sem cobrar nada. Abraço

      1. Cristina Ferreira

        Outro abraço

        1. Jorge C Ferreira

          Obrigado

  7. Regina

    A sensibilidade de ouvir e entender o que parece esquecido. A reciprocidade da humildade do belo na emoção da partilha. Querido Amigo dificilmente esqueço esta crónica “Cartas de uma vida”. Abraço Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. A partilha. A procura do belo, porque o belo vale a pena. A tua sensibilidade. Abraço

  8. Célia M Cavaco

    Sabes mau amigo? Eu que até acho que falo pelos cotovelos,até deixo as palavras soltas por aí…hoje li e reli, e fiquei apenas a ler outras tantas vezes. Quanta doçura,tanto escrito que gostaria de ouvir de viva voz a leitura deste texto.Abraço amigo,obrigada.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Célia. Que bela é a tua leitura. Assim nos vamos perdendo e encontrando. Abraço

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